Em recentes discussões e reflexões, além de uma aula sobre diretrizes nutricionais, passei a enxergar a intervenção do Estado de forma diferente. Hoje, considero fundamental a participação estatal na vida dos brasileiros. Você, defensor do Estado gigante, não se empolgue. Você, defensor do Estado mínimo, siga meu raciocínio. Irei abordar o tema saúde, pois estou inserido nele como médico. Medicamentos, açúcar e suplementos alimentares sustentarão meu raciocínio.
Há exatos 13 anos, me deparei com a força e influência da indústria farmacêutica no setor da saúde após a leitura do excelente “A Verdade sobre a Indústria Farmacêutica” (indico demais!) da autora Marcia Angels, ex-editora da revista New England Journal of Medicine (prestigiada revista médica). Recentemente, o documentário “O Império da Dor” (se não assistiu, recomendo fortemente também) escancarou esta realidade. As “Big Pharmas” se utilizam de estratégias, no mínimo questionáveis, para vender seus medicamentos. Os médicos são conduzidos, com extrema facilidade, às prescrições bilionárias com desfechos clínicos bem pífios, mas muito bem “photoshopados”. Além da classe médica, a população em geral também tornou-se um alvo ainda mais fácil das estratégias de venda da bilionária indústria farmacêutica mundo afora.
Saindo dos remédios, mas ainda dentro da saúde, entramos em outra indústria que dispensa comentários: a Indústria Alimentícia. Aqui, foco total nos alimentos ultraprocessados. Em preparação para uma aula que ministrei no último Congresso Brasileiro de Clínica Médica, me assustei com alguns dados em relação ao consumo de açúcar no Brasil e no mundo, especificamente nos EUA:
Em 1700, o consumo de açúcar nos EUA era de 1,8kg por pessoa por ano (Guyenet and Landen, 2005);
Em 2005, esse número encontrava-se nos 58,9kg por pessoa por ano (Guyenet and Landen, 2005);
A recomendação da Organização Mundial da Saúde é de no máximo 18,2kg por habitante por ano, sendo que o ideal seria de até 9,1kg!
O brasileiro consome 55kg em média por ano! (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, 2007)
O consumo exagerado de açúcar vem, basicamente, dos alimentos ultraprocessados. A população é “sugada” pelas propagandas, pela hiperpalatibilidade (sabores artificiais exagerados que exacerbam os sentidos e criam um padrão de gosto no organismo), pela facilidade de acesso (principalmente do ponto de vista econômico, com preços bem abaixo que os alimentos in natura) e pela divulgação criminosa, a meu ver, de que esses produtos promovem a saúde. Inúmeros trabalhos já apontam para o sentido completamente oposto: o do desenvolvimento de inúmeras doenças (obesidade, diabetes, hipertensão, câncer e depressão). Atualmente, cerca de 20% do que o brasileiro ingere é de alimentos ultraprocessados (Nupens - Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, 2018). Esse número vem crescendo, mas ainda é bem inferior aos 70% do consumo das crianças e adolescentes americanos (JAMA. 2021;326(6):519-530). Lembrando que os EUA, principalmente em se tratando do setor saúde, não é exemplo para ninguém.
Atualmente, outra potência que vem ganhando super poderes é a Indústria da Suplementação Alimentar, a queridinha que “vende saúde” através de cápsulas! E o melhor, sem nenhum esforço por parte do beneficiário e com benefícios bem controversos! A fórmula do sucesso dessa indústria?
Não existe regulamentação! Não se trata de um medicamento, mas sim de um suplemento; logo, pode-se colocar o que se quer dentro das cápsulas e sem nenhum controle de qualidade. Sim! Você pode estar tomando farinha embalada como milagrosa ou pior, substâncias tóxicas à sua saúde. Sem nenhum controle de agências fiscalizadoras.
É caro! O público alvo é a classe mais favorecida e a margem de lucro torna-se bem atraente.
A maioria não faz mal de maneira grosseira! Pouquíssimos efeitos colaterais que promovem a falácia da positividade: “Se não faz mal, vai que faz bem, vou tomar!"
O uso crônico! Cria-se um mercado eterno!
Tudo bem, entendi. Agora me explica o que o Estado tem a ver com remédios, alimentos e suplementos, por gentileza? Acompanhe meu raciocínio… o indivíduo sozinho, por mais consciente e culto que seja, é presa fácil para o marketing mau destes setores. Ooohhh! E agora quem poderá nos defender? Eu! O Estado! A única instituição com força suficiente para barrar as grandes corporações (mesmo assim, com muita dificuldade) que prejudicam a saúde da população é o Estado.
Vamos a um exemplo real em que o Brasil dá um show no cenário mundial: o combate ao tabagismo (Lei Nº 9.294, de 15 de Julho de 1996, o início de tudo). Somos referência mundial neste quesito (sim, o Brasil possui muitas virtudes, mas seguimos preferindo apontar o que há de ruim) com uma queda impressionante nos últimos 20 anos. Apenas o Estado, com intervenções rígidas, tais quais proibição de propagandas, aplicação de multas graúdas, inserindo fotos de pessoas doentes pelo cigarro nos maços, conseguiu proteger a população. Nós, meros indivíduos isolados, somos como crianças que ainda não têm condições de tomar certas decisões e que são facilmente influenciadas. O Estado surge com um papel semelhante ao dos Pais na educação dos filhos pequenos. Colocando limites, definindo regras e trabalhando o ambiente para proteger os seus “filhos”, a população. Óbvio que esse caminho deve ser apartidário, baseado em evidências confiáveis (epidemiologicamente e cientificamente) e isento de conflitos de interesse (ou com o mínimo possível). A liberação dos cigarros eletrônicos, caso ocorra no Brasil, será um tremendo retrocesso em termos de saúde pública. Literalmente, derramaríamos o “balde de leite” que demoramos 20 anos para encher.
O Estado é o único que pode proteger a população dos alimentos ultraprocessados, do açúcar e das cápsulas milagrosas sem nenhuma evidência científica. Ao invés de discutirmos futilidades, vamos usar os dados, a epidemiologia, a ciência e a inteligência para trilharmos caminhos mais saudáveis para a sociedade. O Estado precisa agir como pais responsáveis: proteger sim, oferecer condições mínimas para o desenvolvimento e independência dos filhos, mas sem mimar demais. Uma boa referência seriam os animais na natureza. Protegem suas crias, mas ensinam como sobreviver na natureza: se você não se desenvolver, será engolido. Em suma: “Te protejo até você crescer, mas a responsabilidade direta pelo seu desenvolvimento é exclusivamente sua, de mais ninguém!”
Muito bem colocado. Boa reflexão
Abraço
Parabéns pela lucidez com que trata o Estado. Não existe uma regra fixa e completa de Estado Mínimo (liberalismo) e Estado Total (ditadura). Há de haver sempre a sabedoria de o que é bom e o que é ruim independente de partidarismo.